segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Entrevista: QUEBRANDO MITOS

  

                                     Alysson Muotri


 Só quem descobre cedo que “a vida agarra-se ao difícil” poderia escolher o desafio de estudar a mais grave síndrome do espectro autista e alcançar, em apenas três anos, resultados revolucionários.
 Estamos falando do professor da Universidade da Califórnia Alysson Muotri, biólogo molecular formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com doutorado em Genética pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado em Neurociência e Células-Tronco no Instituto Salk de Pesquisas Biológicas, nos Estados Unidos.
 Esse jovem cientista brasileiro ganhou notoriedade mundial, em novembro de 2010, ao publicar seu trabalho na Cell, renomada revista científica internacional, em que divulgou três feitos inéditos.
 Primeiro, Muotri e sua equipe de pesquisadores criaram neurônios autistas em laboratório. Extraíram células da pele de pacientes e induziram-nas a se transformar em células-tronco embrionárias pluripotentes (as chamadas iPSC – induced Pluripotent Stem Cells, capazes de originar vários tipos de tecidos). Em seguida, demonstraram que os neurônios autistas diferem dos normais desde o início do desenvolvimento, derrubando assim um mito sobre as causas do distúrbio.

 “Mostramos que os defeitos eram, de fato, genéticos e não frutos de algum fator ambiental”, o pesquisador declara. Por fim, o grupo chegou ao alvo principal: conseguiram reverter o estado deficiente do neurônio autista em neurônio normal. Assim, abriram a perspectiva de cura para um dos mais estigmatizados transtornos humanos. Atingir tão significativa descoberta aos 36 anos de idade tem seus segredos.
 A fórmula mistura paixão pela ciência com dedicação obcecada ao trabalho. E como ninguém é de ferro, Muotri busca descanso e inspiração na prática da ioga e nas ondas do surfe. Leia, a seguir, a entrevista exclusiva que ele concedeu a esta revista.

Entrevista



Em novembro do ano passado, o senhor publicou um estudo que abriu perspectivas de tratamento do autismo. Como se desenvolveu essa pesquisa? O objetivo foi o de desenvolver um modelo para estudo de doenças mentais humanas. Aproveitamos a tecnologia de reprogramação genética (desenvolvida pelo pesquisador Shinya Yamanaka), aplicando-a numa síndrome do espectro autista. Reprogramamos células da pele de pacientes com Síndrome de Rett e de crianças não afetadas pela doença, transformando-as em células pluripotentes. A partir daí, diferenciamos essas células em neurônios e comparamos o grupo de pacientes com o controle. Observamos diferenças bem específicas entre os grupos. Neurônios derivados de crianças com o espectro autista apresentaram soma menor e reduzida densidade de espinhos, além da dramática diminuição na capacidade de formar sinapses excitatórias. Isso foi confirmado com experimentos desenhados para testar a conectividade entre os neurônios, revelando que as redes neuronais do autista estavam realmente se comportando de forma deficiente. Após essa constatação, testamos algumas drogas e conseguimos reverter esse “estado” deficiente do neurônio de volta ao normal.

Quanto tempo passou do início de sua pesquisa até alcançar a reversão do neurônio autista? Do conceito até a publicação final, levamos três anos. Tínhamos alcançado os resultados de reversão já no segundo ano. Mas até que isso fosse aceito pelos rigorosos padrões de publicação internacional passou mais um ano. Foram feitos diversos outros testes com outros controles para confirmar o resultado.


Quais consequências a reversão de um neurônio autista em neurônio normal poderá produzir? Essa descoberta significa um caminho para a cura da doença?
Doenças psiquiátricas ou que possuem um componente de interação social afetado são doenças tipicamente humanas, ou seja, não existem modelos ideais para estudar autismo ou esquizofrenia, por exemplo. Sem modelos, não dá para entender como o transtorno surge ou mesmo desenhar estratégias de cura ou tratamento. Os resultados do estudo são revolucionários porque mostram que é possível encontrar padrões em neurônios derivados de pessoas com doenças mentais. Talvez o mais importante seja o fato de nossos dados sugerirem fortemente que a doença não é permanente, mas pode ser reversível.

Na hipótese de se desenvolver um medicamento, dá para prever como se comportaria uma pessoa autista? A capacidade de comunicação e aprendizagem se restauraria de imediato? E as habilidades já desenvolvidas pelos autistas se perderiam? A reversão dos problemas sinápticos obtida em cultura por meio de drogas abriu as portas para uma perspectiva impensável: podemos curar o autismo. Na hipótese de termos um medicamento em mãos que funcione, é difícil prever os resultados. Vejo dois cenários: os defeitos serão corrigidos, preservando memórias e habilidades. Por outro lado, pode ser que a correção apague o que o cérebro já aprendeu e se reorganize novamente, seria como um renascimento. Não sei o que esperar realmente, é possível que diferentes medicamentos atuem em regiões diferentes do cérebro, com resultados distintos. Tudo isso nos aguarda num futuro próximo. Sou otimista.




Estudar os neurônios autistas desenvolvidos em laboratório a partir de células-tronco é igual a observar os neurônios funcionando dentro do cérebro de um autista? Não sei, nunca tivemos a oportunidade de observar neurônios humanos nesse nível de detalhe antes. Não seria ético fazer isso in vivo. Por outro lado, testes com neurônios de camundongos derivados de célulastronco foram comparados com neurônios de camundongos in vivo e a conclusão é que se comportam como se fossem neurônios fetais. Não vejo razão para pensar que em humanos seria diferente.

Por que escolheu pesquisar a Síndrome de Rett? Na continuidade da pesquisa, o senhor pretende estudar as outras formas mais comuns de autismo? A Síndrome de Rett está no extremo mais grave do espectro autista. Os neurônios são afetados de forma mais rigorosa, funcionando como o protótipo ideal e facilitando reconhecer os defeitos celulares. Além disso, a maioria dos pacientes Rett possui mutações conhecidas. Isso foi essencial para mostrarmos que os defeitos eram, de fato, genéticos e não frutos de algum fator ambiental. Atualmente estamos trabalhando com outros pacientes do espectro autista, buscando confirmar se existe uma sobreposição de defeitos que indiquem vias moleculares comuns. Se for verdade, a mesma droga pode funcionar para diversos pacientes.



A técnica utilizada em sua pesquisa poderá ser aplicada no estudo sobre depressão e bipolaridade,
doenças cada vez mais prevalentes na atualidade? Com certeza. Já fomos contatados por diversos grupos estudando outras doenças psiquiátricas como esquizofrenia, depressão e bipolaridade. Estamos auxiliando esses grupos a estabelecer esses modelos. Acredito que, em breve, estudos semelhantes vão ser publicados para essas doenças.

De que forma a pesquisa com células-tronco poderá contribuir para o desenvolvimento de medicamentos, ferramentas de diagnóstico e terapias para as diferentes doenças? Quando se fala em células-tronco, a grande maioria pensa em transplante. Na verdade, para mim, o transplante celular vai ser a última das aplicações das células-tronco. A primeira vai ser oral – uma pílula! Isso porque a tecnologia de triagem de drogas é algo que a academia e as biotechs sabem fazer. Já temos know-how para isso. Mostramos que as iPSC (células-tronco embrionárias induzidas) de autistas são um ótimo modelo. Foi a prova de princípio. Agora existem alguns passos que precisam ser otimizados para que isso seja feito em larga escala. O uso de iPSC para diagnóstico vai também ser implementado num futuro não muito longe. A associação dessa tecnologia de fenótipos celulares com o genoma é o futuro para uma medicina personalizada.


Em um dos artigos publicados no seu blog, o senhor sugeriu que os países deveriam formar e financiar os seus pesquisadores nos grandes centros internacionais. Qual seria a vantagem para o Brasil incentivar a chamada “fuga de cérebros”? Parece uma lógica não intuitiva, mas a colocação de profissionais brasileiros em centros de pesquisa com destaque mundial é essencial para que estes funcionem como “olheiros” de tecnologia. Isto também pode facilitar a transferência da tecnologia, auxiliando nas colaborações e conselhos especializados. Essa prática acontece com quase todos os países em desenvolvimento. Em geral, esses países identificam seus “cérebros” e oferecem uma posição de diplomata científico, permitindo que o indivíduo até tenha dois laboratórios. Nunca vi esse tipo de iniciativa no Brasil. Veja bem, não estou falando de centros medíocres no exterior, nem de profissionais medíocres. Isso só vai funcionar com os melhores, a nata da ciência nacional. Ainda outro dia durante uma conferência internacional, vi uma megaempresa de biotecnologia anunciar uma parceria com a Índia. Indaguei o porquê da Índia e não o Brasil, por exemplo. O CEO rebateu na hora: “Você é o único brasileiro que eu conheço fazendo ciência de ponta. Nunca tive interação com brasileiros antes, mas converso com indianos todos os dias”. Essa realidade tem que mudar, precisamos de mais cérebros fora.

Como o senhor avalia o atual estágio da pesquisa científica no Brasil? Estamos de cinco a dez anos atrás do Japão e EUA. Um pouco menos, se compararmos a alguns países europeus. Acho que o maior problema é a falta de interação internacional. Nosso provincianismo científico afeta muito a qualidade e o impacto dos trabalhos no Brasil. Outro problema que eu vejo é a estabilidade do pesquisador nas universidades brasileiras. Esse cargo já foi listado como um dos melhores do mundo! Como isso é possível? Aqui nos EUA a história é completamente diferente, não existe essa estabilidade garantida. O pesquisador é avaliado a todo momento. Tem que estar no topo sempre. Não sei se é realmente a melhor opção. Acho que algo no meio-termo seria o ideal. Por fim, aponto a falta de autonomia dentro das universidades. Os departamentos não podem simplesmente contratar quem quer, tem que passar por um ultrapassado concurso público que nem sempre premia o melhor.

O ministro de Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, propôs que bancos financiadores sejam
sócios no produto final da inovação dentro das empresas. Assim, compartilham o risco, mas, se der certo, também compartilham os ganhos. Como o senhor avalia essa ideia? A ideia é boa. É o que acontece nos EUA, por exemplo. Não tem nada de novidade. Temos mesmo é que mudar a cultura de investimento e de capital de risco. Se o governo puder ajudar nessa integração, legal! Se não atrapalhar, já ajuda também.

Quando e por que escolheu seguir a carreira de pesquisador? “A vida agarra-se ao difícil.” Esta frase do Rilke (Cartas a um jovem poeta) mudou a minha forma de ver as coisas. Concluí que a vida só valeria a pena se fosse vivida ao máximo. Para isso, queria um desafio enorme. Pensei, então, qual seria a profissão mais difícil do mundo? Concluí que era pesquisador, ajudar milhares de pessoas só com sua criatividade e capacidade de execução. Ainda penso assim. Joguei-me de cabeça, apaixonado. Hoje sou um obcecado.

Entre tantos campos de pesquisa, por que escolheu a neurociência? E como chegou até o Instituto Salk? Difícil explicar com clareza. Acho que sempre vi o cérebro como o portal para se entender diversas coisas. Assim, entendendo o cérebro, estaria mais perto de entender a humanidade e a mim mesmo. Depois do meu doutoramento em genética pela USP, fui até aos EUA em busca de emprego. Visitei diversos laboratórios e apresentei minhas propostas e ideias. Fui convidado a voltar e trabalhar em todos que
visitei. Mas me apaixonei pela pesquisa que acontecia em San Diego, particularmente no Instituto Salk. O
estilo de vida do sul da Califórnia, unindo surfe, ioga e vinhedos, me atraiu muito. Além disso, o jeito irreverente e descontraído de se fazer ciência em San Diego é imbatível. Tinha que voltar. Voltei e decidi ficar
para montar o meu próprio laboratório. Hoje faço parte de um consórcio de institutos focados em células-tronco e neurociência. É o melhor lugar no mundo para fazer isso.



Por: Sueli Zola


Fonte: + SAÚDE Magazine | Ano2 - N° 6 | Abril, Maio, Junho 2011

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Autismo: Um jeito diferente se ser


Isolamento social e dificuldade na comunicação são inabilidades do autismo

 Fruto de uma gravidez desejada,Pedro foi um bebê precoce. Comapenas cinco meses de vida já engatinhava e, aos nove meses, começoua andar. Apenas um detalhe no seu comportamento chamou a atenção de sua família: ele não desenvolvia a linguagem. “As outras crianças falavam palavras e até frases e meu filho apenas balbuciava”, diz Rosane Barreto, mãe de Pedro, que hoje está com cinco anos.
 A ausência da fala contrastava com a impressionante capacidade motora do menino. Preocupados, os pais levaram a queixa ao pediatra. Na falta de uma resposta convincente, procuraram um fonoaudiólogo e continuaram sem explicação. A hipótese diagnóstica só surgiu quando, aos dois anos, Pedro passou a apresentar condutas incomuns, como brincar sempre sozinho e andar nas pontas dos pés. As atitudes indicavam autismo.
 Ao contrário do que muitos pensam, o autismo não é doença. “Trata-se de um transtorno caracterizado pela forma comportamental diferente da criança se relacionar com as outras pessoas”, afirma Vicente José Assencio Ferreira, neuropediatra, doutor em medicina pela Universidade de São Paulo e diretor clínico do CEMTE – Centro Educacional Municipal Terapêutico Especializado da cidade de Taubaté.
 Presentes desde o nascimento, os traços autistas são mais bem observados após um ano de idade e antes do
três anos. “No primeiro ano de vida, os sinais são pouco evidenciáveis. O bebê não chora ao ser deixado no berço, não olha para a mãe ao ser amamentado, não apresenta o sorriso social e nem demonstra angústia diante de estranhos”, esclarece Assencio Ferreira. Mesmo quando os indícios deixam de ser tão sutis, não é fácil fechar o diagnóstico. “A criança apresenta inabilidades para se comunicar e não interage. A família traz as queixas, mas a grande maioria passa despercebida até para os pediatras”, afirma Tânia Sbervelieri Ojeda, fonoaudióloga que está se especializando em distúrbios da aprendizagem.
 O caso de Pedro Barreto é um exemplo claro disso. Até ter certeza de qual transtorno afetava a criança, a família percorreu diferentes médicos. “Foram rios de dinheiro em consultas particularese exames. Só soubemos, de fato, que meu filho era portador de autismo após ser examinado, em conjunto, por médico
psiquiatra, psicólogo, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional”, conta Rosane. “O diagnóstico deve ser feito por equipe multidisciplinar”, confirma Tânia.

O desafio da inclusão

 Um dos aspectos que dificultam a identificação do autismo é a diversidade nas formas de apresentação do transtorno. Há desde quadro leve, em que a pessoa acometida tem inteligência normal, trabalha, namora, casa, até casos extremos de completa dependência física e mental.
 Segundo o neuropediatra Assencio Ferreira, ao se supor a hipótese diagnóstica, o importante é observar a
presença da tríade: preferência por isolamento social, déficit na comunicação interpessoal e inabilidade para jogos em geral. As três condições são prevalentes em todo o espectro autista.
 Para tratar essas inabilidades, é necessária uma abordagem terapêutica multidisciplinar, que inclui a intervenção de especialistas em fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia, pedagogia e psicopedagogia.
“Buscamos fazer a inclusão social da criança autista, propondo o convívio e o aprendizado nas escolas comuns. Mas a tarefa não é simples. Existem ainda muitos tabus a serem superados”, comenta Tânia.
 Numa megalópole tão repleta de alternativas como São Paulo, a fonoaudióloga nem sempre consegue localizar escolas inclusivas, que aceitem e saibam lidar com o autista. Se na maior capital do país há obstáculos, dá para imaginar a situação em outras cidades do Brasil. “Quando morei em Fortaleza, Pedro
frequentou uma escola com corpo docente especializado. Era maravilhoso. Mas, após mudarmos para Brasília, passamos a enfrentar barreiras. As instituições educacionais são obrigadas, por lei, a fazer a inclusão, mas não têm experiência e nem capacidade para fazer um trabalho eficaz com as crianças”, enfatiza Rosane.
 Descrito pela primeira vez em 1943, pelo médico austríaco Leo Kanner, o autismo tem sido objeto de muitos estudos. Até os anos 1970, acreditava-se que o transtorno decorria de atitudes inadequadas dos pais, que levavam a criança a se isolar. “Quanto sofrimento e culpa infringimos aos pais (principalmente às mães) ao julgar que o autismo era adquirido num ambiente familiar ausente de carinhos verdadeiros”, salienta Assencio Ferreira.
 Hoje os conceitos mudaram. Já se sabe que as características autistas são inatas, como bem comprovou o estudo de Alysson Muotri, que iremos postar na próxima matéria, da semana que vem.

Fonte: +SAÚDE Magazine  |  Ano 2 - N° 6  |  Abril, Maio, Junho 2011