quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Crônica: VULTO

        

              Quase despida, começou a dançar. José, quase hipnotizado, começou a sonhar...



 No dia em que ela saiu, José sentiu um pouco de alívio. Há algum tempo percebera que Efigênia dava mostras de não estar gostando da vida em comum. Na idade em que estavam, nem pensavam em discutir a relação, como dizem nas novelas. Cada um para o seu lado, dissera Fi, como a chamava carinhosamente.   Tudo bem, respondeu resmungando.
 Na varanda, bebendo vinho e com o velho cachorro aos seus pés, José ficou olhando o infinito, que nada
mais era do que a janela do apartamento em frente. – O que é mesmo que estou fazendo aqui? Não temos
mais nada em comum. Amanhã, quando Fi voltar da sua vigésima viagem, vou combinar uma saída honrosa para nós dois. E continuou bebendo.
 A noite desceu rapidamente. No apartamento em frente, as luzes se acenderam por trás das cortinas desbotadas. Um vulto de mulher passou lentamente como num filme de Almodóvar. Em movimentos cadenciados, uma mulher tirou a blusa e a jogou no chão. Fez com a saia a mesma coisa, a diferença é que foi se contorcendo até que a saia caísse.

 Quase despida, começou a dançar. José, quase hipnotizado, começou a sonhar. Em seus sonhos, não quis ser partner nos braços daquele vulto, preferiu abrir as gavetas do tempo e questionar o passado. Desiludido,
perguntava a si mesmo onde ficou a magia daqueles momentos que tivera com sua mulher.
 Tempos aqueles em que tudo tinha uma conotação especial, bastava ser parte integrante de seu pequeno universo particular. Houve tempos em que discutia com os amigos que não acreditavam que a felicidade tem cor, a saudade tem aromas e que a música também causa dor. Cansado, não deu mais importância para seus saudosismos, embora sentisse na alma cada reflexo luminoso do sorriso de sua amada, sentia até hoje o cheiro especial da festa em que a conheceu e chorava cada minuto de saudade dos momentos mais felizes de sua vida.

 Mais um gole de vinho. O vulto de mulher já dança há horas. José foi longe e sequer sabe descrever a performance da dançarina. Só questiona e imagina: que vida bela ali tão perto mora! E aqui, o que se vive? O passado já não importa, o presente não existe e o futuro chegará a nós, mas nós não estaremos nele, seremos meros passageiros de malas e destinos vazios.
 Ouve um barulho. Por um minuto pensa que Fi estivesse de volta e que pudessem resgatar cada segundo
esquecido e maltratado pela indiferença. Mas que nada. O barulho que interrompe seu momento não passava de um vento que tocou forte a cortina, fazendo despedaçar o porta-retrato que eternizava a união de José e sua eterna amada. Diante daquela situação, José ainda pensa em juntar os estilhaços no chão, porém, volta ao seu canto de reflexão e, decidido, se justifica para as decisões que pretende tomar.
 Nada acontece por acaso. O que se quebra, mesmo que colado novamente, não terá inteireza, haverá sempre fissuras que se deixarão contaminar. A música ainda toca, mas o vulto de mulher já não dança mais. José não mais imagina que a felicidade mora ao lado. O vento da noite já sopra mais frio, porém José não tem nem hora, nem por que se apressar para entrar. Amanhã será tudo igual, o sol irá nascer mesmo sem
sua permissão.
 Tudo irá caminhar, e noite novamente chegará. Antes que isto aconteça, José fecha os olhos e adormece.

Paulo Castelo Branco

Fonte: Revista +SAÚDE  |  Ano 2 | N° 6 |  Abril, Maio, Junho 2011

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