quarta-feira, 15 de setembro de 2010

ENTRE O SILÊNCIO E A PALAVRA

Informação é o mais importante para a pessoa que gagueja
Minha vida se divide em duas: antes e depois de entender melhor o que é a gagueira. Até perceber que não existia culpa por gaguejar, que a gagueira era involuntária e não tinha cura, vivia uma vida de vergonha e culpa. Tinha medo de situações que precisasse me expor. As coisas mais simples me marcavam. Atender telefone, marcar uma consulta, pedir um lanche. Teve época em que deixei de usar relógio por medo de que alguém me perguntasse as horas.”
O depoimento é de Paulo Amaro Martins, auditor fiscal de 45 anos, de Campinas (SP). Com histórico na família – uma tia, primos e um sobrinho –, Paulo gagueja desde a infância. Ele conta que, somente após buscar um especialista e entender o tema, conseguiu lidar com o receio que o afligia. “Com a maturidade e o acesso à informação minha vida mudou. Continuo gaguejando, mas não deixo de fazer nada por causa dela. Se tenho de fazer, faço, se tenho de falar, falo, e as pessoas têm que me ouvir”, enfatiza.
A história de Paulo é uma entre quase dois milhões de pessoas que gaguejam no Brasil. A proporção é de quatro homens para uma mulher, segundo dados do Instituto Brasileiro de Fluência (IBF). Vale lembrar que gaguejar difere de outro problema que incide na fala: a disfluência. “Disfluência ocorre entre os 2 e os 4 anos, dura algumas poucas semanas e, se bem trabalhada, vai embora. Gagueira é um distúrbio na fluência da fala. A fluência é uma das propriedades da linguagem. Por isso, gagueira é um distúrbio de linguagem e deve ser tratada pelo profissional legalmente habilitado, que é o fonoaudiólogo”, explicam as fonoaudiólogas Ignês Maia Ribeiro e Anelise Junqueira Bohnen, respectivamente presidente e diretora educacional do IBF. “A maior incidência de gagueira é ao redor dos 3 anos, justamente quando o processo de aquisição de linguagem está em andamento”, completam.
“Há diferentes tipos e graus de gagueira. Ninguém é cem porcento fluente: nós apresentamos algumas hesitações (é, hum...), utilizamos interjeições (né, tá...) e fazemos pausas durante a fala. No entanto, essas disfluências são consideradas comuns a todos os falantes. As pessoas que gaguejam costumam apresentar outros tipos de disfluência, como repetições de sons, sílabas, palavras, prolongamentos, bloqueios etc.”, acrescenta Érica Ferraz, fonoaudióloga do Grupo Microsom.
A genética é relevante para o problema, que não tem causa específica. Diferentemente do que se imagina, estresse e movimentos involuntários – corporais (tiques) ou vocais –, por exemplo, não provocam a gagueira crônica. “Em geral, as pessoas que gaguejam têm histórico familiar positivo e, na ausência deste, pode haver uma história perinatal importante. Já sabemos o que não causa gagueira: sustos, traumas, tombos... A tendência de as pessoas pensarem que gagueira é desencadeada por algum fator psicológico não tem fundamentação científica. Ela pode ser classificada como leve, moderada e severa. Mas é importante saber que a gagueira, além de involuntária, é intermitente, ou seja, em certos dias a criança pode gaguejar bastante em alguns momentos e gaguejar nada em outros. Por isso, um processo de avaliação vai permitir saber a frequência da gagueira”, esclarecem Ignês e Anelise.
Segundo as especialistas, a gagueira resulta de uma falha no sincronismo da ativação nas áreas da fala no cérebro, “sugerindo uma maior atividade do hemisfério direito como um mecanismo compensatório”. Isso pode dificultar a organização sequencial dos movimentos da fala, conforme cada indivíduo. Esta é também a chave para o seu tratamento.
Érica Ferraz, do Grupo Microsom, destaca que a descoberta precoce ajuda no sucesso terapêutico. “Existem diferentes graus de gagueira e o tratamento varia de acordo com a gravidade do quadro. Nem todas as pessoas que gaguejam procuram ajuda. Se a gagueira for diagnosticada logo na infância, o tratamento é essencial e as possibilidades de melhora são grandes. No entanto, na fase adulta, essa opção depende do quanto a dificuldade de fala incomoda e incapacita a pessoa a realizar suas atividades diárias”, diz.
Além da terapia, aquele que gagueja encontra barreira em uma infinidade de situações que o leva a “ter” sua fala compreendida. Para o bate-papo não se tornar um martírio, é importante que o ouvinte não interrompa ou mesmo “complete” o que o interlocutor tenta dizer. “Expressões como ‘para’, ‘respira’ e ‘calma’ só exacerbam a dificuldade da fluência. Afinal, a pessoa que gagueja tem as palavras ‘na ponta da língua’ e apenas quer a oportunidade de expressá-las”, aconselham as fonoaudiólogas. Paulo sabe bem disso. “O maior ganho que se pode obter em um tratamento é a aceitação. A consolidação interna de que nós somos gagos e não estamos gagos. Ao aceitar a gagueira, pude perceber o real tamanho que ela tem em minha vida, e é muito menor do que eu imaginava. Eu sou muito maior que ela”.

Por: Keli Vasconcelos
Fonte: + Saúde Magazine. Ano 1, nº1. Jan./Fev/Mar – 2010
Contato: maissaudemagazine@portoalegreclinicas.com.br


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